sábado, 24 de abril de 2010

Ademir da Guia


Ademir impõe com seu jogo

o ritmo do chumbo (e o peso),

da lesma, da câmara lenta,

do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando

no adversário, grosso, de dentro,

impondo-lhe o que ele deseja,

mandando nele, apodrecendo-o

Ritmo morno, de andar na areia,

de água doente de alagados,

entorpecendo e então atando

o mais irrequieto adversário.


João Cabral de Mello Neto

sábado, 17 de abril de 2010

APENAS PASSARINHOS

Vi uma família chegar ao cemitério. Um homem, uma mulher e uma menina criança. Do Voyage vinho o homem retirou um latão, uma pá e uma caixa com azulejos azuis. Já sobre o muro, observei a entrada. Vagarosos, caminhavam pelo campo, aparentemente sem se preocuparem com direção. O homem, impassível. A mulher, inanimada. A menina criança, dispersa, talvez pensando na brincadeira que foi interrompida, ou não. No Campo Santo, só os passarinhos cantavam. Pareciam apenas passear, não buscavam um túmulo. A menina criança observava as fotos, sorrindo diante de algumas. O homem e a mulher apenas andavam. De repente, um sinal vital. O homem sinaliza com a cabeça, virando para esquerda. De costas para mim, os sinais somem. Só pude notar o gesticular dos braços. O homem coloca a caixa de azulejos em cima do latão, abraçando-os. A mulher segura a mão da menina criança. No Campo Santo, só os passarinhos cantavam. Depois de alguns momentos, viraram novamente à esquerda. Já os via de perfil. Pararam. Era o Céu dos Anjinhos. Mais alguns passos. Cruz 559. O latão, os azulejos e os joelhos no chão. A mulher cruza os braços. A menina brinca com velhas flores de outras covas. Pá, cimento e azulejo. Apenas passarinhos. E o homem construía uma gaiola para um passarinho.

S.C.M.