terça-feira, 26 de janeiro de 2010

CAFÉ, GEL, LEITE E DUAS CEBOLAS

O conto a seguir foi escrito no final de 2008 e concorreu no mapa cultural paulista em 2009. Obviamente, não ganhei nada com ele, mas, sei lá, achei ele uma das melhores coisas que escrevi e que, provavelmente, escreverei depois de deixar o colegial e virar um "homem das letras".

CAFÉ, GEL, LEITE E DUAS CEBOLAS

Samuel Carlos Melo

Era segunda-feira. Seguindo ordens de minha mãe, fui ao mercado realizar uma pequena compra: café, gel, leite e duas cebolas. Mas, como a tarde era quente e o dinheiro suficiente para antes passar na sorveteria, desviei o caminho. Mamãe não ligaria...
O centro estava uma bagunça, bandeiras rosas e azuis coloriam as calçadas: era ano de eleições municipais (eleição em cidade pequena é sempre uma festa, não acontece muita coisa por aqui...). Chegando à sorveteria, pude notar que, devido a obras, a praça da matriz estava completamente cercada por placas de madeira pintadas de amarelo. Enquanto o sorvete não terminava, eu me distraía observando o movimento da poeira avermelhada que surgia no ar sobre as placas formando desenhos abstratos: desenhos de criança.
Já a caminho do mercado, eu era empurrado para fora da calçada pela euforia dos agitadores de bandeira, enquanto uma carreata me impedia de atravessar a rua. Apesar do incomodo que me causava essa histeria, permaneci inerte, achando tudo normal. Nunca pensei muito sobre política.
O mercado parecia estar envolvido pelo clima das ruas, só não tão colorido. As pessoas falavam, esbarravam-se com seus carrinhos de compra. Eu, na minha costumeira inércia, percorria as prateleiras já me arrependendo do sorvete. A cebola parecia mais barata, já o gel de cabelo, o leite e o café estavam extremamente mais caros. Que agonia é fazer compras...
Tendo concluído as compras, pus-me em direção a minha casa trazendo os produtos em uma sacola amarela (essas cores...) da rede de supermercados. No caminho, eu, matuto, bolava uma desculpa para justificar a demora e o pouco troco. Talvez mamãe ligasse...
- Moço, moço!
- Oi?
- Moço, me ajuda a pegar uma senhora ali no banheiro? Ela é muito gorda, acho que morreu.
- Ajudo...
- Entra aqui, moço. Pode deixar a sacola aí na cadeira de área. É ali moço.
- Faleceu! Faleceu! Faleceu! Faleceu...
- Liga não, moço, ele tem problema. É o neto dela.
- Hum...
- Ajuda o motorista da ambulância ali, moço. Ajuda ele a levantar ela do vaso.
- Pega o braço dela ali, rapaz. Vamos tentar colocar ela na maca. Vamos, rapaz, me ajude!
- Faleceu! Faleceu! Ela faleceu, tia.
- Tenha fé, meu filho...
- Deixa, moço. Segura minha filha aqui que eu mesmo pego. Toma-a aqui, moço!
- Pego...
- Vamos, rápido! Pega você mesmo então, senhora. Isso, ali na maca!
- A ambulância já está aberta. É só colocá-la dentro.
- Vamos! Força! Tem que pôr a maca nos trilhos, senão ela não entra!
- Ela é muito pesada!
- Faleceu! Faleceu! Faleceu!
- Vamos! Força! Força!
- Ainda está fora dos trilhos!
- Vai, senhor, empurra aí! Isso! Foi!
- Fecha! Isso!
- Vou levar ela pro hospital, quem vai comigo?
- Eu vou! Sou irmão dela.
- Então vamos, senhor!
- Você viu? Tinha algo saindo no nariz dela. Parecia um caroço. Algo de cor esquisita.
- Eu vi. Estranho, não é?
- Pode dar minha filha aqui. Obrigado, moço.
- De nada...
- Moço, moço!
- Oi?
- A sua sacola!
- Ah, sim. Obrigado.
Abri o portão. Abri a porta. Mamãe não estava em casa. Deixei as compras sobre a mesa da cozinha. Liguei a televisão. Eu nunca me esqueci do que havia naquela sacola amarela: café, gel, leite e duas cebolas.